Pepe Escobar: A charada da Síria: que talvez se torne a primeira Guerra dos BRICS 1

Share Button

Caros leitores, a importância deste texto é para registrar como foram os acontecimentos da caída de Damasco e como era o nosso olhar 2 dias antes do 8/12/2024, o fatídico dia em que a Síria deixou , temporáriamente, de ser a “Síria”.

Editora do Oriente Mídia


“O HTS, o antigo Front Nusra, talvez não seja estritamente ISIS; seria mais uma espécie de ISIS turco”, escreve Pepe Escobar

Terroristas seguram armas em frente ao prédio do governo de Hama, Síria

erroristas seguram armas em frente ao prédio do governo de Hama, Síria (Foto: REUTERS/Mahmoud Hassano)

A linha do tempo conta a história.

18 de novembro: Ronen Bar, o chefe da Shin Bet de Israel, se encontra com os chefes do MIT, o serviço de inteligência da Turquia.

25 de novembro: o Chefe da OTAN Mark Rutte se encontra com Erdogan, o Sultão da Turquia.

26 de novembro: salafi-jihadistas reunidos pelo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), anteriormente conhecido como o Front Nusra, apoiados pela inteligência turca e por uma pesada coalisão de jihadis-de-aluguel, lançam um ataque relâmpago contra Aleppo.

A ofensiva jihadis-de-aluguel teve origem no Grande Idiblistão. Foi lá que dezenas de milhares de jihadistas se escondiam, segundo a – agora fracassada – estratégia Damasco-Moscou de 2020, que a Turquia teve que aceitar a contragosto. A turma dos jihadis-de-aluguel é formada por bandos de mercenários que cruzaram a fronteira vindos – de onde mais? – da Turquia: uigures, uzbeques, tajiques, ucranianos e até mesmo importações do ISIS-K.

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do Irã, Esmail Baghaei, no início desta semana, confirmou que a ofensiva salafi-jihadista foi coordenada pelos Estados Unidos e por Israel.

Baghaei não mencionou a Turquia, embora tenha dito que o ataque terrorista ocorreu imediatamente depois de Israel ter aceito um cessar-fogo com o Hezbollah – já rompido por Tel Aviv dezenas de vezes – e depois de Netanyahu ter publicamente acusado o presidente sírio Bashar al-Assad de “estar brincando com fogo” ao permitir o trânsito de mísseis iranianos modernos e de equipamento militar para o Hezbollah através da Síria.

Logo antes do cessar-fogo, Tel Aviv destruiu praticamente todas as rotas de comunicação entre a Síria e o Líbano. Netanyahu, subsequentemente, ressaltou que o foco agora é a “ameaça iraniana”, essencial para esmagar todo o Eixo da Resistência.

Segundo uma fonte dos serviços especiais da Síria, falando ao RIA Novosti, consultores ucranianos desempenharam um papel central na captura de Allepo – fornecendo drones e sistemas americanos de navegação por satélite e guerra eletrônica, e ensinando aos colaboradores sírios e a operadores do Partido Islâmico do Turquestão a usá-los.

As comunicações do Exército Árabe Sírio (SAA) foram totalmente interrompidas por esses sistemas de guerra eletrônica: “Os grupos de assalto e os drones estavam equipados com instrumentos GPS criptografados e uso extensivo de IA, para que o uso e a navegação de UAVs de ataque e de drones kamikaze ocorresse a partir de pontos distantes”.

O mecanismo foi montado há meses. Kiev fez um trato explícito com os salafi-jihadistas: drones em troca de bandos de  takfiris a serem empregados contra a Rússia na guerra por procuração dos Estados Unidos/OTAN contra a Rússia. Na Ucrânia.

O que a Turquia realmente pretende? – O papel da Turquia, na prática, na ofensiva salafi-jihadista do Grande Idlibistão não poderia ser mais obscuro.

No último fim de semana, o Chanceler Hakan Fidan que, significativamente, foi também um dos chefes do serviço de inteligência, negou qualquer participação turca. Ninguém – fora a esfera da OTAN – acredita nisso. Nenhum salafi-jihadista no noroeste da Síria, conseguiria sequer riscar um fósforo sem antes ter luz verde da inteligência turca – uma vez que eles são financiados e armados por Ancara.

A linha oficial da Turquia é apoiar a “oposição” – salafi-jihadista – síria como um todo, ao mesmo tempo em que deplora levemente a ofensiva do Grande Idlibistão. Mais uma vez, evasivas clássicas. Mas a conclusão lógica é que Ancara tenha acabado de enterrar o processo de Astana – ao trair seus parceiros políticos Rússia e Irã.

Erdogan e Hakan Fidan, até agora, não conseguiram explicar à totalidade do Oeste Asiático – e também ao Sul Global – como essa sofisticada operação jihadis-de-aluguel poderia ter sido montada pelos Estados Unidos/Israel sem que a Turquia ficasse sabendo.

E, seja como for, teria sido uma cilada, Ancara simplesmente não tem poderio soberano para denunciá-la.

Oç que os fatos demonstram é que um novo front foi de fato aberto contra o Irã. O Dividir para Dominar dos Estados Unidos/Israel tem o potencial de esmagar por completo a entente Teerã-Ancara, e ativos russos importantes – em sua maior parte aeroespaciais – terão que ser desviados da Ucrânia para apoiar Damasco.

Não há mistério: há anos Ancara morre de vontade de controlar Allepo – mesmo que indiretamente para “estabilizá-la” para os negócios (em benefício das empresas turcas), e também para permitir o retorno de muitos refugiados relativamente ricos de Alepo que atualmente estão na Turquia. Paralelamente, ocupar Allepo também é um projeto americano: nesse caso, para prejudicar gravemente o Eixo da Resistência em benefício de Tel Aviv.

Alguma outra novidade? O Sultão Erdogan – agora parceiro dos BRICS – mais uma vez está em uma sinuca de bico. Pior ainda: face a dois membros de primeira linha dos BRICS. Moscou e Teerã esperam explicações detalhadas. Não há nada que Putin abomine mais do que traição descarada.

Erdogan tomou a iniciativa e ligou para Putin – introduzindo um novo elemento: ele focou as relações econômicas Rússia-Turquia. Depois do tsunami de sanções contra a Rússia, a Turquia se converteu em uma ponte importante e privilegiada entre Moscou e o Ocidente. Além disso, os investimentos russos na Turquia são substanciais: gás, tecnologia nuclear, alimentos. Ambos os atores sempre viram a guerra na Síria como conectada à geoeconomia.

Bandos de jihadis-de-aluguel a todo o vapor – Enquanto isso, mais uma vez, os fatos são implacáveis. O HTS, o antigo Front Nusra, talvez não seja estritamente ISIS; seria mais uma espécie de ISIS turco. O Comandante Abu Mohammed al-Joulani, o Emir de fato do suspeitíssimo novo grupo, abandonou todas as variantes da al-Qaeda e do ISIS para formar o HTS. Ele comanda bandos de jihadis-de-aluguel – a maioria deles do Heartland. E ele é o queridinho do MIT da Turquia. Portanto, um queridinho de Israel/OTAN.

CIA e Pentágono, cada um operando sua própria rede, armaram 21 das 28 milícias sírias, salafi-jihadistas ou não, organizadas pelo MIT da Turquia para formar uma espécie de “exército nacional” mercenário no Grande Idlibistão, segundo o Seta, um think tank turco.

O analista sírio Kevork Almassian mostrou que os proverbiais “ex-oficiais israelenses” admitiram ter fornecidos dinheiro, armas, munição e até mesmo tratamento médico às gangues do Grande Idlibistão.

O ex-coronel do Exécito Israelense Mordechai Kedar admitiu abertamente ter apoiado os “rebeldes” na “remoção do triângulo Hezbollah, Irã e Assad”. Os “rebeldes”, disse ele, chegaram a manifestar o desejo de “abrir embaixadas de Israel em Damasco e em Beirute”.

O HTS é a mais recente encarnação dos brinquedos favoritos do Ocidente Coletivo: o “rebelde moderado” (lembram-se de Obama e Hillary?) A lealdade vai 100% para Ancara. Eles odeiam os xiitas e os alauítas – e mantém uma vasta rede de prisões.

Foi o HTS dos salafi-jihadistas que forçou a total rendição de Alepo – sem luta – tendo filamdo a si próprios em frente à lendária Cidadela. De 2012 a 2016, apenas algumas dezenas de soldados do SAA conseguiram defender a cidade, mesmo quando completamente cercados.

Desde o começo da guerra em 2011, Damasco jamais enfrentou uma derrota tão devastadora como a queda de Alepo. O Iraque viveu algo tragicamente semelhante com a queda de Mosul, em 2014. Seria justo afirmar que a imensa maioria dos sírios são contrários ao acordo Rússia-Turquia-Irã de 2020, que de fato evitou a libertação de Idlib: um erro estratégico de grandes proporções.

E fica ainda pior – porque o problema de fato começou em 2018, quando os turcos sequer estavam em Afrin, e a libertação de Hama/Idlib foi interrompida para libertar os subúrbios de Damasco. Foi de lá que dezenas de milhares de jihadists foram transferidos para Idlib.

Quando se chegou a 2020, já era tarde demais: Idlib estava sendo defendida por ninguém menos que o Exército Turco.

O SAA, no que se refere a Idlib, mostrou-se um desastre do tipo dormir no volante. Eles não modernizaram suas defesas, não integraram o uso de drones, não prepararam defesa tática contra os drones kamikaze e de observação do FPV, não deram atenção às dezenas de espiões estrangeiros. Não é de admirar que o bando de jihadis-de-aluguel não tenha encontrado resistência ao tomar a maior parte de Alepo em 48 horas.

Após o acordo de 2020, o Irã e as forças pró-Irã deixaram a Síria, em especial nas províncias de Alepo e Idlib. Esses setores foram transferidos para o SAA. Quanto às empresas russas, que já não estavam tão interessadas em sofrer sanções contra o bloqueio ocidental de Damasco, elas foram mal-recebidas pelos clãs, tribos e famílias locais.

Desta vez, há meses há era claro que o HTS vinha preparando uma ofensiva. Avisos foram enviados a Damasco. Mas os sírios confiaram no acordo com a Turquia e no reestabelecimento de relações com os países árabes. Grande erro.

Tudo isso ensina pelo menos duas lições graves à Rússia. De agora em diante, o que quer que aconteça, Moscou terá que reinar nessas redes sírias incestuosas – e corruptas – para poder de fato ajudar na defesa da soberania nacional. E o que ocorreu em Idlib demonstra que a guerra contra os bandeiristas de Kiev terá que se estender até o Dniester, não parando nas fronteiras da república de Donetsk.

Guerra na estrada: em um cruzamento de conectividade – Até agora, o HTS e os bandos jihadis-de-aluguel não cometeram muitos erros. Eles tentam ocupar todas as estradas que chegam a Alepo a fim de forçar que as novas batalhas ocorram o mais longe possível da cidade, para ter tempo para uma tomada total.

As guerras no Oeste Asiático acontecem nas estradas. Ou com cavalos, no deserto, ou com Toyotas. Não há muitas minas e não há lama, como na Ucrânia. A guerra síria, portanto, está em constante fluxo – e sempre na estrada. O HTS já está usando a rodovia M4, saindo de Idlib, e vem avançando sobre trechos da importantíssima M5 que liga Alepo a Damasco.

Enquanto isso, os contornos de uma contraofensiva vêm sendo traçados. Do Iraque, dezenas de milhares de milicianos xiitas, iazidis e cristãos do Hezbollah Kata’ib, da Brigada Fatemiyoun, das Unidades de Mobilização Popular e do Hashd al-Shaabi (as Unidades de Mobilização Popular – PMUs – têm muita experiência na luta contra o ISIS) entraram no nordeste da Síria pelo cruzamento de al-Bukamal.

A 25ª Divisão/Forças Tigre do respeitado comandante Suhail Al-Hassan, na verdade as melhores forças sírias, estão a caminho, lado a lado com as milícias tribais.

A Síria é uma encruzilhada de conectividade de importância máxima – o que data das Antigas Rotas da Seda. Se o combo Estados Unidos/Israel alcançar seu perene sonho de mudar o regime de Damasco, eles conseguirão bloquear o crucial ponto de trânsito rumo ao Leste do Mediterrâneo para o Irã.

Eles, igualmente, possibilitariam/forçariam Qatar a finalmente construir um gasoduto para fornecer gás natural para a Europa através da Síria, uma das jogadas de Brzezinski visando a substituir o gás natural russo – dossiê  detalhadamente examinado por mim  12 anos atrás.

As táticas do Deep State dos Estados Unidos não são exatamente novidade: tentar desviar a atenção da Rússia ao focar na Síria; forçar os limites da capacidade de Moscou e aliviar a pressão sobre a Ucrânia, logo antes da assinatura de uma seríssima parceria estratégica ampla entre Rússia e Irã.

Mas há fatores complicadores para os Estados Unidos. A Arábia Saudita, que apoiava avidamente os terroristas ao início da guerra contra a Síria, mudou sua política depois do envolvimento da Rússia em 2015. E agora Riad é também – ainda em cima do muro – parceira dos BRICS. Arábia Saudita, Egito e EAU vêm apoiando Assad contra os capangas do HTS, o que é altamente significativo.

A Síria é absolutamente crucial para a grande estratégia russa para o Oeste Asiático-África. Damasco é extremamente importante como conexão da Rússia com a África – onde Moscou vem de fato exercendo seu pleno poderio global, como recentemente observado na África do Sul, com alguns acréscimos intrigantes na forma de reais contra-sanções contra os oligarcas ocidentais, cujas posições por toda a África vêm sendo seriamente enfraquecidas.

Os membros dos BRICS Rússia e Irã não têm alternativa que não corrigir, por todos os meios necessários, a incompetência demonstrada por Damasco e pelo SAA, de modo a manter seu acesso ao Leste do Mediterrâneo, Líbano, Iraque e mais além. O que implica uma jogada muito séria: a Rússia desviar ativos importantes da batalha da Novorossiya a fim de preservar uma Síria relativamente soberana.

A marcha sonâmbula rumo à primeira guerra dos BRICS – Na atual conjuntura, o SAA parece ter montado uma ainda frágil linha de defesa nas aldeias ao norte de Hama. O lendário General Soleimani, especialista em todos os vetores da guerra ao terror, chegou do Irã para ajudar. Por sinal, em 2020, ele queria avançar até Idlib. Foi por isso que Assad exigiu que ele se retirasse, uma vez que Damasco optou por congelar a guerra. Hoje a conversa é outra.

O bando jihadis-de-aluguel/OTAN do Grande Idlibistão não possui qualquer defesa aérea. Eles agora vêm sendo atacados quase que ininterruptamente por jatos russo/sírios.

A situação de Alepo é dramática. As gangues terroristas lideradas pelo HTS detêm o controle sobre praticamente toda a Zona Vermelha, e os raros setores ainda não invadidos estão sitiados. Eles vêm avançando também na frente Alepo-Raqqa, mas o mesmo acontece com os curdos apoiados pelos Estados Unidos, o que significa um avanço da OTAN. No deserto, tudo é assustadoramente silencioso.

O Exército Russo mantinha apenas 120 pessoas em Alepo. Os que sobreviveram partiram. Então, o que a Rússia teria pela frente? O melhor cenário de médio prazo possível seria se concentrar em Lattakia, ensinar os soldados sírios a lutarem ao estilo russo e orientá-los sobre a maneira correta de libertar seu próprio país.

O passo imediato é se dar conta de que oferecer um porto seguro a dezenas de milhares de terroristas no Grande Idlibistão, em 2020, teve consequências sinistras.

O próximo passo é entender plenamente que se Moscou negociar uma espécie de Minsk 3 com a OTAN, o que é essencialmente o que Trump pretende – Kiev se converterá em uma Idlib 2.0. E as gangues bandeiristas providenciarão para que haja novos Alepos – derrotados – dentro da Federação Russa.

A Maioria Global deve se colocar em alerta total. O ataque no Grande Idiblistão é parte de uma complexa operação interconectada  – que usa o caos como instrumento preferencial – com o fim de virar o Oeste Asiático de ponta cabeça e literalmente atear fogo na região. O que pode perfeitamente se metastizar na Primeira Guerra dos BRICS.

Tradução de Patricia Zimbres

Fonte: 247

Share Button

Um comentário sobre “Pepe Escobar: A charada da Síria: que talvez se torne a primeira Guerra dos BRICS

  1. Responder Sérgio de Carvalho Oliveira dez 21,2024 1:42

    Desde Bush filho (ou antes) se delineou a guerra contra o “eixo do mal”: Iraque, Líbia, Síria, Somália, Sudão, Líbano, Irã – e Coréia do Norte foi acrescentada. Eles estão conseguindo: Iraque 2003, Líbia 2011, Síria de 2013 a 2024, Líbano (parcialmente destruído), e a bola da vez é o Irã. Mas o objetivo final chama-se Rússia e China. A arrogância, cegueira, prepotência e crueldade do eixo imperialista nazi-sionista estadunidense (com o apoio dos vassalos europeus) superam o pior pesadelo. Só a rebeldia dialética dos povos poderá salvar-nos da destruição.

Deixar um comentário

  

  

  

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.