Além de ser autor de um livro que se tornou uma Bíblia para a criação de startups, “De Zero a Um” (2012), ele escreveu três ensaios filosóficos que explicitam uma orientação política bastante peculiar.
Os textos são: “O Mito da Diversidade” (1995), uma polêmica contra o politicamente correto que infesta as universidades; “O Momento de Strauss” (2004), disponível no Brasil na coletânea “Política e Apocalipse”, publicada pela É Realizações, e “O Niilismo Não É Suficiente”, escrito em 2023, ainda inédito, mas que pode ser lido nos subterrâneos da internet.
“O Momento de Strauss” é uma homenagem a
Leo Strauss, pensador alemão exilado nos EUA por causa do nazismo, que desenvolveu uma filosofia baseada em estratégias retóricas que nos ajudam a escapar do totalitarismo da modernidade, algo caro a Thiel.
“O Niilismo Não É Suficiente” é um diagnóstico agudo sobre a paralisia existencial que atinge o mundo contemporâneo e que, logo, alimenta a mesma estagnação do progresso tecnológico e do papel das elites já analisada por Karp.
No fundo, o que une todos os nomes citados acima, junto com a administração Trump, é a esperança de que o impasse atual só será resolvido por meio de uma ruptura apocalíptica —de preferência feita por esses poderosos que se escondem nas sombras.
O vocabulário religioso não é usado aqui de maneira displicente. Vejamos o exemplo de Thiel: ele é um cristão conservador assumido (apesar de, paradoxalmente, ser também um homossexual militante), além de discípulo do antropólogo
René Girard.
Girard é
conhecido pela sua “teoria mimética”, segundo a qual o comportamento humano é motivado pelo desejo de imitação: copiamos uns aos outros porque sempre há uma terceira pessoa que estimula isso.
Quando essa relação permanece em estágio de desconhecimento, aumentando assim o desejo metafísico de se apossar e de ser o outro, as tensões se avolumam, até que haverá uma situação de violência em que alguém será inevitavelmente sacrificado (em termos metafóricos ou reais). A partir dessa vítima (o “bode expiatório”), o ciclo de imitação se renova e tudo recomeça até chegar a um novo impasse —e a um novo conflito.
Para Girard, o cristianismo foi a religião que revelou esse mecanismo sangrento aos olhos de todos —e nos possibilitou, grosso modo, construir a cultura moderna em que estamos inseridos, uma cultura cujo o verdadeiro herói sempre será o mais fraco.
Thiel adota em parte todos esses pontos do pensador francês; afinal, foi seu aluno na Universidade Stanford e ajuda a divulgar seu pensamento por meio das ações do think tank chamado Imitatio.
Mas não é apenas isso. Girard e Thiel acreditam que a mensagem do evangelho cristão é de apocalipse —isto é, da revelação das primeiras e últimas coisas de como o mundo realmente funciona. Porém, o discípulo acrescentou algo que o mestre nem sequer imaginou, ao perverter esta esperança autêntica com um detalhe: a importância da técnica, e da tecnologia, neste processo.
É aqui que os projetos de Thiel, Karp, Land, Yarvin, Musk e Trump convergem de forma assustadora. Para eles, a IA é a nova bomba atômica, um poder que contém a violência inevitável do Anticristo —simbolizado, nessa perspectiva, pela ordem democrática liberal dos últimos 70 anos, responsável pela corrupção moral do Ocidente, e que chegou ao seu ápice entre os anos 1990-2000.
O uso do verbo “conter” é proposital.
Thiel e sua turma —apelidada erroneamente pela imprensa de “Dark Enlightement” (iluminismo sombrio), pois pouco se preocupam a racionalidade filosófica— têm a crença absoluta de que, hoje, eles são o “katechon” dos nossos tempos.
Esta expressão, retirada da Segunda Epístola aos Tessalonicenses e atribuída ao apóstolo Paulo, significa indistintamente “algo-alguém-alguma coisa” que detém um poder e que “retém-freia-atrasa” o definitivo triunfo do espírito da impiedade (o “Anticristo”), travando assim “o seu aniquilamento pela força da boca do sopro do Senhor”.
Contudo, segundo um dos estudiosos do tema, o filósofo Massimo Cacciari em “O Poder que Freia” (Âyiné), há, na verdade, um campo de forças e de tensões sobrepostas, que se acumulam e se dissolvem, às vezes de forma consciente, outras de maneira imperceptível à consciência humana.
Esta “rede”, fortemente conectada em seus nós górdios (e muito semelhante à internet oriunda do Vale do Silício), dá a certeza de que esses dilemas só serão plenamente resolvidos em um grande evento apocalíptico de proporções inimagináveis. E justamente por causa do poder do “katechon”, que freia tal desenlace definitivo, as crises mundiais (políticas, sociais, espirituais) se tornam progressivamente permanentes, sem nenhuma solução evidente.
Ou seja: estamos na era da “insecuritas”, na qual a insegurança e a incerteza trarão a paralisia e a anomia —a “stasis” da guerra civil indefinida e indiferenciada— ao nosso redor.
No entanto, se reconhecermos que vivemos em pleno “katechon”, isso nos induz a concluir também que não há outra solução exceto aceitar este cenário de impermanência.
Assim como o
grupo liderado por Peter Thiel, não queremos aceitar que somos desesperados, sem nenhum outro intermédio, do Estado ou da igreja; também não queremos admitir, após décadas na dependência dessas instituições “pluralistas e democráticas”, que todas as mediações humanas foram destruídas por completo.
Como afirmou o próprio Thiel em uma das suas palestras públicas mais recentes: “Talvez não devemos temer o Apocalipse, mas sim o Anticristo”. O problema é quando este evento apocalíptico é também esperado pela nêmesis deste “katechon” tecnológico —no caso, a esquerda revolucionária.
Afinal, segundo Richard Landes, na obra-prima “Será que o Mundo Inteiro Está Errado?” (lançada aqui pela editora Contexto), a cultura woke é um produto daquilo que pode ser classificado como “mentalidade do ano 2000”, em que “durante toda uma geração, o Ocidente gerou e implantou um conjunto de objetivos ideológicos progressistas que ao mesmo tempo aumentou a diversidade e a criatividade da cultura e minou a sua própria tessitura”.
Relembre as promessas de campanha de Donald Trump
Ora, se ambos os lados que disputam o papel do “katechon” entram na rivalidade apocalíptica, cujo objetivo supremo é controlar o funcionamento da IA, o que sobra?
Sobra Donald Trump, o “Avatar Digital” que anulará e conciliará todas essas simetrias de forma terrível, o monstro guardado a sete chaves no meio do labirinto do poder. Ele veio com correntes e martelos para destruir o Ancien Regime do liberalismo e implementar uma nova ordem, ainda desconhecida, mas que sem dúvida virá para cometer o mais sério dos crimes: a extinção da memória humana.
Este fato aterrorizante será acelerado pela IA bancada por empresas como
Palantir e OpenAI, entre outras.
Como se isso não bastasse, ao provocar o caos econômico para
reiniciar as relações internacionais entre a China e a União Europeia, Trump brinca diante da mídia como se fosse o amador que será devorado pelo Sol, provocando uma dissonância cognitiva impecável na intelligentsia progressista, quando, na verdade, o ex-magnata joga com esses tecnocratas escondidos nas sombras, para finalmente mostrar que, no fim, ele é o próprio Sistema Solar.
No entanto, como qualquer pedaço da nossa galáxia, um dia este sistema se transformará em um buraco negro —e a era de Trump será indiscutivelmente o seu centro destruidor, apesar dos seus (eventuais) acertos e dos seus (constantes) erros.
O presidente americano, com a sua “República Tecnológica” do Vale do Silício, irá dilapidar o que restou da nossa história e da nossa tradição —enfim, a nossa humanidade—, em parceria com outros governos e movimentos totalitários, como
a China, a Rússia e o islamismo radical.
Haverá escapatória para nós, pobres mortais? É sempre bom lembrar que o complemento ao mito de Ícaro é a história do seu pai, o artífice Dédalo.
No silêncio, no exílio e na astúcia que marcaram a sua biografia, ele construiu o labirinto que aprisionava o Minotauro. Acabou preso nele; depois conseguiu escapar, sabendo que seu algoz, o rei Minos, não dominava o ar. O custo disso foi a vida do seu filho.
Ao enterrá-lo com as próprias mãos, concluiu que, apesar da tragédia inevitável, precisava celebrar a criação humana, envolta no segredo da existência.
Afinal, se o poder mora nas sombras porque os amadores sempre procuram pelo Sol, a única certeza que nos resta é a de que ninguém neste planeta é dono do céu —e será nele, mais cedo ou mais tarde, que encontraremos a nossa liberdade.
Martim Vasques da Cunha
Doutor em ética e filosofia política (USP), é autor de “Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More”, “A Poeira da Glória”, “A Tirania dos Especialistas” e “A Disciplina do Deserto” (no prelo)
Texto original publicado na Folha de São Paulo